O temor perseverante

O livro do profeta Malaquias, considerado um dos profetas menores devido ao tamanho de sua obra, não é dos mais lidos por nós. Último texto do Antigo Testamento, termina com uma nota de esperança a respeito da vinda do profeta Elias: “Ele converterá o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos aos pais, para que eu não venha e não fira a terra com maldição” (4.6). A palavra final de Deus é uma palavra de esperança e salvação, sinaliza Malaquias, mesmo que as situações ao nosso redor não sejam favoráveis à fé.

Um profeta, uma época

Malaquias, de acordo com o prof. José Carlos de Souza (Ministério dos Profetas no AT, 1993, Imprensa Metodista), é um profeta anônimo. O nome do livro foi tirado do versículo 3.1, onde aparece a palavra hebraica traduzida por “meu mensageiro”. Não se sabe nada sobre ele e o livro não dá pistas de sua família, origem ou trabalho. Mas a mensagem de Malaquias é forte e bem situada no tempo: ele profetiza depois da reconstrução do templo (515a.C.) e antes da reforma de Esdras e Neemias (450aC). Ele enfrentou algumas situações muito difíceis, que podem ser comparadas a muitos aspectos de nossa vida no mundo atual.

Indiferença e frouxidão religiosa: Ageu e Zacarias haviam pregado com ênfase, mas sua mensagem estava caindo no esquecimento do povo. Israel pensava que a reconstrução do templo ia trazer de volta os tempos de ouro de Davi e Salomão, a retomada do reino davídico, mas nada disso acontecia. As colheitas também foram fracas, havia intrigas no meio do povo e as dificuldades eram muitas. Como conseqüência, houve um relaxamento, manifesto no jeito de cultuar a Deus: animais defeituosos e doentes eram levados para o sacrifício (1.7-8; 1.13-14); os dízimos e ofertas não eram entregues como deveriam no templo (3.7-10); os sacerdotes se portavam indignamente e levavam, pelo mau exemplo, muita gente ao erro (2.5-9); cumpriam seu ministério de forma relaxada e disciplicente, dizendo: “Que canseira!” (1.13).

Incredulidade: O povo não cria mais em Deus como devia. Duvidava do seu amor (1.2) e não via mais propósito em servi-lo (3.14). Mesmo as pessoas piedosas, diziam em sua angústia: “Onde está o Deus do juízo?” (2.17)

Corrupção social: Quando a religião é vivida falsamente, isso se reproduz na sociedade. Muitos judeus influentes estavam se casando com mulheres pagãs, mesmo diante do risco disso para a pureza da fé. Eles faziam isso para agradar os estrangeiros e adquirir prestígio junto a eles (2.10-16). Para isso, chegavam até mesmo a se divorciar de suas mulheres judias. Malaquias também aponta a exploração dos trabalhadores assalariados, a opressão dos órfãos e viúvas e a injustiça aos estrangeiros (3.5).

Temor além das circunstâncias

Porém, no capítulo 3, Malaquias fala de um grupo de pessoas, que ele chama de “os que temiam ao Senhor”. Em meio aos discursos e práticas equivocadas do povo, “eles falavam uns aos outros e o Senhor atentava e ouvia”. A expressão parece dar a entender que eles estavam se incentivando na perseverança dos valores de Deus, pois havia um memorial diante de Deus, onde esses fiéis estavam escritos, para que Deus não esquecesse de sua fidelidade.

Esses “tementes a Deus e guardadores do seu nome” seriam, por isso, um “tesouro particular”. Quando o juízo de Deus se abatesse em qualquer momento da história, eles estariam a salvos, “poupados como o filho que serve ao Pai”. E esse momento de salvação iria, enfim, desmascarar os falsos servidores de Deus e identificar os servos autênticos.

O profeta Malaquias nos mostra que a fidelidade e a perseverança em tempos de crise definem a nossa vida diante de Deus. Não são as circunstâncias que determinam nossa espiritualidade, mas nossa própria postura. Freqüentemente, ao longo da história, vemos que os maiores exemplos de fé vieram, exatamente, nos piores momentos da vida das pessoas.

Estevão, quando apedrejado, testemunhou de sua fé até o fim. Policarpo, um bispo da Igreja antiga, foi queimado vivo, quando tinha cerca de 80 anos, por causa de sua fé. Quando lhe pediram para desistir de Cristo e sobreviver, ele teria respondido: “Por 80 anos o servi fielmente e ele nunca nenhum mal me fez. Como negaria agora meu amo e Senhor?”. Quantos profetas derramaram seu sangue em fidelidade à Palavra recebida? Quantas pessoas anônimas morrem hoje por causa do Evangelho em tantos lugares no mundo afora?

Entretanto, a Igreja, muitas vezes, tem esperado que Deus lhe dê sempre circunstâncias favoráveis para que possa viver bem a fé. Queremos viver sem tribulações, sem problemas, sem crises, sem exigências. Quando algum problema aparece ou quando a Palavra nos exorta, fugimos da situação. Alegamos, como no tempo de Malaquias, que “Deus nos abandonou”, ou que “não aproveitamos nada em servi-lo”.

Mas os fiéis servidores nos mostram algumas pistas para conhecer o justo e o perverso; aquele que serve a Deus e aquele que não serve. A primeira delas é exatamente esta: “não olhar para as circunstâncias”.

A diferença entre o justo e o perverso

Os que queriam seguir ao Senhor eram poucos. Ao seu redor, toda uma nação havia desistido de ser fiel. Ageu, que profetizou pouco antes, já havia dito: “cada um corre por sua própria casa, enquanto a casa do Senhor permanece em ruínas” (Ag1.4 e 9). Zacarias também falou: “Quando jejuastes e pranteastes, no quinto e no sétimo mês, durante estes setenta anos, foi para mim que jejuaste, com efeito, para mim? Quando comeis e bebeis, não é para vós mesmos que comeis e bebeis?” (Zc 7.5-6). A religião e a vida estavam voltados apenas para os interesses pessoais: a comunidade de fé e as injustiças cometidas não doíam no coração nem dos governantes, nem dos sacerdotes, nem do próprio povo.

Mas os que temiam ao Senhor falavam uns aos outros; se encorajavam para prosseguir na sua fidelidade. A diferença entre o justo e o perverso aparecia no fato de que eles, ao contrário dos demais, estavam preocupados com os valores de Deus. Perseveravam mesmo quando os outros já tinham desistido. E nesse processo, incentivavam-se. Não viviam sua fé isoladamente, mas se apoiavam mutuamente, na parceria, no esforço. Cada um dizia ao outro. Mas não estavam sozinhos em seu diálogo. “Deus atentava e ouvia”; Deus participava de sua luta por manterem-se fiéis. O justo sabe que Deus está com ele, não importam as circunstâncias. E ele também permanece ao lado de seu irmão, de sua irmã, incentivando-os, não importam as circunstâncias.

A perseverança é algo tão importante para demonstrar nossa fidelidade que certa vez, Jesus disse: “Quem tem posto a mão no arado e olha para trás, não é apto para o reino de Deus” (Lucas 9.61). Sabendo das perseguições que sucederiam aos seus seguidores, ele disse: “vocês serão entregues nas sinagogas e nos tribunais; serão açoitados e apresentados perante reis e governadores. Um irmão entregará o outro à morte; o pai entregará o filho; filhos se levantarão contra os pais e os matarão. Vocês serão odiados de todos por causa do meu nome. Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mc 13.9-13).

Temor recompensado

O texto que lemos termina de modo maravilhoso, demonstrando que Deus não apenas atentava e ouvia, mas que recompensaria a fidelidade dos que o “temiam e se lembravam do seu nome”. Ele diz: “eles serão particular tesouro para mim”. Somos preciosos para Deus. Podemos viver nossa vida como esses tementes que se tornavam um tesouro exclusivo do Senhor. Para isso, somos exortados à perseverança. Só quem persevera é salvo, disse Jesus. Quem desiste no meio do caminho e volta para trás não é apto. Às vezes, a espera é solitária. Poucos hoje em dia estão “topando o desafio” de serem fiéis. Prova disso é a grande religiosidade mas nenhuma profundidade que vemos nas pessoas. A religião de interesse não era só do tempo de Malaquias. Até hoje e mais ainda, vemos pessoas trocando ofertas e orações por recompensas pessoais.

Mas o justo e o perverso são identificados claramente, declara Malaquias. Ele parece até fazer coro com o salmista que diz: “O justo é como árvore plantada junto a correntes de águas. Os perversos são como a palha que o vento espalha” (Sl 1). Sim, porque Malaquias diz não apenas que os fiéis são um tesouro para Deus, mas que existe, diante do Senhor, um memorial, onde os nomes estão escritos. Na visão do profeta, Deus olharia para aquele memorial e saberia, a todo o tempo, quem eram os justos, os perseverantes. E no dia em que eles fossem poupados do juízo, se manifestaria a todos sua justiça e fidelidade: “Então vereis outra vez a diferença entre o justo e o perverso; entre aquele que serve a Deus e aquele que não o serve”.

Conclusão

Durante os cinco anos de faculdade que eu fiz, houve muitos momentos em que eu quis desistir. Durante pastorado, também houve momentos em que eu pensei: “Será que é isso mesmo?”. Imagino que ainda vou pensar isso muitas vezes; “Será que minha posição está correta?”; “Será que é assim que devo exercer meu ministério diante de Deus?”. Mas a cada vez que eu persevero, vejo a recompensa de Deus. O Senhor tem colocado diversos anjos no meu caminho. Pessoas que são como esses fiéis, que falam comigo do amor de Deus, que me relembram minha fidelidade, meus compromissos com o Senhor. Que me relembram como Deus me ama e o que ele tem feito por mim, para mim e por meio de mim. Essas pessoas me exortam a crer mais e são fundamentais na minha vida.

Questionar faz parte da nossa experiência de vida; desistir, não. É preciso falarmos conosco mesmos e uns com os outros: “Deus não desistiu de nós; não podemos desistir dele”. “Mesmo quando somos infiéis, ele permanece fiel” (2Tm 2.13). Mesmo quando erramos, ele acerta. Quando tropeçamos, diz o salmista: “O Senhor firma os passos do homem bom e no seu caminho se compraz. Se cair, não ficará prostrado, o Senhor o segura pela mão” (Sl 37.23).

Os tempos são difíceis hoje. Vivemos como diz a epístola a Timóteo: “Ora, o Espírito afirma expressamente que nos últimos tempos, alguns abandonarão a fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios; pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm cauterizada a própria consciência”. (1Tm 4.1-2) e ainda “Sabe, porém isso: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, orgulhosos, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres do que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhes, entretanto, o poder” (2Tm 3.1-5).

Não é diferente do que viviam os tementes a Deus do tempo de Malaquias. Mas se eles perseveraram para ver seus nomes diante do memorial de Deus, nós também podemos. O conselho bíblico é claro: “E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não desfalecermos” (Gálatas 6.9) e “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor” (1Co 15.58). Perseverar: esta é a principal virtude do justo. Deus nos faça assim!


Bispa Hideíde Brito Torres

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